'Sentou-se à beira da vida e descascou alguns sonhos pervertidos,
sob a sombra da árvore da loucura que são esses dias sulcados em intolerância e
crueldade, nessa terra banhada de sangue negro, pobre, preto, feminino
escurecido e masculino nas mentes, o que fazes tu detrás do desejo é o que te
faz ser diferente de todos. A única salvação é a universalização da desgraça
como ato contínuo, de espécie que devia preferir não procriar, pois o caldo
entornou e de animais como nós nada se espera senão chafurdar, em júbilo ou
desespero, isso depende da sina, nesse lamaçal de ilusão e máscaras. Do fruto
que consomes, sois a casca apodrecida, envolvendo uma verdade íntima que te
engana mais que a mentira de que somos solidários.
E nem mais no câncer, como disse o gênio, pois dependendo do teu
acreditar, da tua origem, te desejarão sofrimentos maiores. Nós somos o povo
embrutecido, vestidos de empáfia e vaidade, desfilando pelo vale da sombra da
morte, orando para seres ocos nosso medo e nossa angústia. Somos os escolhidos
pela força de nossa evolução que parece uma contradição quando a língua
venenosa de todos nós secreta o néctar da maldade planejada, ensaiada enquanto
as formigas morriam queimadas. Sorveu as almas que carregou, exauriu o oásis da
iluminação que passou ao largo de quem fecha os olhos quando algo brilha.
Permaneceu sentado em sua tristeza, com as mãos laceradas e envoltas numa nódoa clara e mortal, que lhe fazia arder o espírito, vermelho-sangue de ausência e autocomiseração.
Chorou aos berros, na esperança de que quem ouvisse lhe desse
alento e motivo para levantar e traçar rotas no emaranhado de caminhos que se
dispõe ao trafegar dos vermes e dos inválidos, dos palhaços sem maquiagem e dos
espectros noturnos de nossa criação.'
Um barulho tirou-me da contemplação e voltei à cadeira...
Dormi e entre os dentes, sangrou a língua dos sonhos.
Acordei com o lamento do dia.
Ao abrir a janela, deparei-me com a minha insensibilidade, que teimou em passar a noite ao relento, revendo suas notas sobre para onde estamos indo. Convidei a entrar, ela riu escarnecida, dizendo que estava ali dentro há muito tempo, pois se divide diuturnamente para me fazer enxergar a realidade através do véu de meus erros.
Lá fora, os desejos morrem. Estão fadados à vida curta, são os
excrementos de nossa alma, expurgados como gritos de desespero.
Desejos são borboletas.
E não estátuas.
E travei cansativo diálogo com minha convidada onipresente,
tomando-a como o deus que me falta, mas mais por prazer que outra coisa, pois
vivo do abandono de crenças em cada esquina onde mora um assombro. E
assombrado, anseio pela solidão mais profunda e escura.
Aquela que dilacera convenções, que me remeterá ao estado
primordial de tudo e todos: o mistério.